Uma viagem à casa da Moura
UMA MOURA E UMA PEDRA À CABEÇA
– Uma viagem à Casa da Moura –
Quantas vezes viajamos à roda do nosso quarto ou caminhamos num
repetitivo trajecto, porque andar é um imperativo que se nos exige face à vida
sedentária, ao aumento de peso, aos altos valores do colesterol e
dos triglicerideos, palavras tão medonhas, como outrora eram o mau-olhado e as
pragas. Abrenúncio! Há aquelas caminhadas colectivas com planificações
rigorosas: apoio médico, forças de segurança… que roçam a genialidade do estudo
programado e dedicado ao físico: os metros percorridos, o número de passadas, o
total de calorias gastas e a quantidade de líquidos que devem ser ingeridos. Há
aquelas outras que terminam com o estender do farnel recheado para partilhar à
sombra e em ameno convívio e, valha-nos S. Gonçalo, repõem ainda mais calorias
que as consumidas. E então não se hão de programar caminhadas para os olhos?
Porque há tanto que ver, descobrir e aprender em trajectos à volta deste
concelho tão imensamente rico em património oral, arqueológico, monumental e
paisagístico.
Os que podem, viajam para as praias, ou se o orçamento
permite, para umas férias tropicais, de preferência nas Caraíbas, para
desfrutar de águas tépidas, tempo esplêndido, destinos inesquecíveis, em suma,
verdadeiros paraísos naturais que resultam, em aventura e prazer, algumas
picadas de mosquitos e uns distúrbios intestinais. Pois, bom proveito! Ficamos
por aqui a concordar com Garrett: “tenho visto alguma coisa no mundo, e
apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que
mais me interessam sempre foram as viagens da minha terra”. Pegamos o bordão de
romeiro e toca a peregrinar pelos caminhos da minha terra em busca de histórias
para contar. Caminhemos então, ou pedalemos ou seguramos o volante, bem mais
cómodo, o preguiçoso se confessa, e partamos à descoberta para conhecer,
aprender e fantasiar.
Quem vem de Carrazeda a Zedes pode seguir o itinerário mais
belo e mágico que conhecemos – o caminho da Casa da Moura, intercetado pela força
do progresso que toma expressão nas modernas rodovias em que motor de explosão
é rei e senhor em desfavor da ferrovia lenta, incómoda e ultrapassada e agora
imolada à necessidade de mais energia, que é o mesmo que dizer, mealheiro de
interesses que não são, com certeza, nossos e pouco ou nada nos dão em troca.
Mas este é o fado que sempre carregamos: levam-nos os recursos naturais sem
contrapartida visível. Quando puderem, levar-nos-ão também este ar sereno,
saudável e puro, nem que seja engarrafado.
Saídos da terra das carraças, Pires Cabral o escreveu, mais
uma tentativa para explicar vocábulo tão esquisito a estranhos, pois não era
preciso esse incómodo. Daqui partidos, sem cara azeda, e com tempo de sobra
porque nestas viagens de descoberta, há que ter hora para partir e não para
regressar. Vamos de encontro às modernas rotundas, símbolos maiores da nossa
modernidade, porque os dez conjuntos escultóricos da Miecal não são mais que,
afiança a grande maioria, um conjunto de calhaus, um desperdício de dinheiros
públicos, copiosamente adjectivados de impropérios que o decoro nos obriga a
não proferir. Ao lado da saída poente de Carrazeda, a mais pujante obra do
esforço privado dos carrazedenses, a zona oficinal e artesanal, que não chega
para estancar o contínuo despovoamento do concelho.
Mais adiante, o resultado da guerra da indiferença e da
marginalização, o bairro do Iraque. Aí poderemos perder a vontade de prosseguir
se reflectirmos um pouco como os poderes públicos, têm votado um grupo de
cidadãos ao abandono e à marginalidade. Não vai compensar apressarmos o passo,
pedalar com mais vigor ou acelerar para queimar os pneus porque o fim do
alcatrão está muito perto. Não vamos seguir pela terra batida pois esta é uma
via sem saída e não daremos grandes voltas à cabeça para compreender que
decorridos cerca de uma vintena de anos ainda não foi possível concluir esta malfadada
variante.
Tomamos a direcção da Samorinha e se alguém tiver vontade de
subir à Senhora da Graça, faça-o. Daí poderá encher o peito e vislumbrar uma das
mais belas paisagens de Ansiães e contemplar grande parte do Reino a que Torga
chamou Maravilhoso e concluir que “não é um panorama que os olhos
contemplam: é um excesso de natureza”.
Se houver jeito, deixe-se o verso brotar que há-de surgir poesia da boa. Siga
até essa oriunda de Zamora, único local conhecido que tem uma Páscoa que não é
festa móvel: aqui pode apreciar o Largo do Cruzeiro, uma jóia do espaço rural,
com o granito a mostrar toda a plenitude, cenário convidativo ao lazer e ao
desfrute da tarde em amena cavaqueira com quem sabe da vida de experiência
feita, e agora, sem tempo ou de forma egoísta, armazenamos a sua sabedoria e os
afectos em deprimentes lares de idosos ou deixamo-los na solidão das aldeias-fantasmas.
Logo à saída da povoação, ninguém
olha para as feridas a céu aberto - as pedreiras no sopé ou naquela que fica
voltada para a serra que agora mete mais medo porque fere de morte a bela
paisagem. Feridas são também os incêndios que consomem mata e floresta, contribuindo
para que, cada ano, se vão os recursos naturais perante a impotência geral. Agora
para chegar à Casa da Moura, há que atravessar essa via que alguém chamou de
estrada da justiça para
com uma região do país que estava a ficar para trás e vai ser o investimento
que definitivamente nos vai tirar do isolamento. É preciso um pouco de esforço
para não rir.
Eis-nos chegados ao destino e ao
mesmo tempo ponto de partida das nossas cogitações. Depois de ganhar fôlego e
voltar costas a uma realidade pouco animadora, está na hora de contemplar uma
construção invulgar e enigmática. Aí se levantam a cerca de dois metros de
altura oito esteios graníticos (mais um que jaz partido) formando uma câmara
encimada por uma laje a modos de uma mesa ou altar. Uma galeria larga e
comprida virada a nascente aponta para o interior misterioso. Na face superior da mesa há nove
covinhas dispostas, cinco delas, em duas linhas paralelas e dois sulcos que
escorrem para o extremo dela. O abade de Baçal elucida que as covinhas são mais
frequentes que os sulcos. E diz-nos que muitos autores as consideram símbolos
religiosos, relacionados com o culto dos mortos, embora até hoje ninguém tenha
explicado satisfatoriamente o seu significado.
O megalitismo, cuja expressão
maior no Norte do país são as antas, está datado dos fins do quinto milénio até
cerca de 2000 anos a.C. caracteriza-se por um conjunto de construções que, se pensa,
serviu a prática de funerais colectivos. A descoberta de menires (pedra
vertical fixada no solo) e cromeleques (menires em forma circular), antas e
outros dólmenes com uma certa disposição no espaço, inscrições e gravuras
rupestres permite admitir também que se realizavam cerimónias ligadas à magia
dos astros, nomeadamente o sol e ao culto da fertilidade.
Conta a lenda que a pedra que lhe
serve de cobertura foi transportada por uma moura que a trouxe lá do fundo da Cabreira,
à cabeça, ao mesmo tempo que amparava no colo o seu filhinho.
Podíamos parar aqui, ao ver a
incongruência cronológica, pois as datas da presença mourisca em Portugal e do
período do megalítico são díspares em cerca de quatro milhares de anos. Não é
isso que nos interessa. Uma lenda mistura a realidade e a fantasia - a referência
aos mouros representa no ideário popular o período mais longínquo que se
recorre para fazer alusões ao passado. O património oral, de que a lenda é um exemplo, é uma
manifestação do génio criador do homem, está profundamente enraizado na
tradição e história das comunidades locais e é por isso uma prova de identidade
e especificidade que urge preservar para a diversidade e riqueza cultural do
país. O povo como autor anónimo da tradição oral assegura assim um espaço na
memória das gerações e possibilita a transmissão de valores e saberes. Este
património por ser oral é imaterial e por isso efémero, daí a importância das
recolhas, pois, para além de retratar as comunidades, permite conhecê-las
melhor e preservar aspectos culturais que a mudança de hábitos sociais e a
erosão do tempo podem perder.
Porém, a compilação do património oral não é suficiente para
a sua preservação como se defendeu. As lendas, histórias e contos populares
compilados e guardados em livros que ninguém lê, não são trabalhados em sala de
aula, não são transmitidos às novas gerações… de nada valem. Elas têm de ser
divulgados, lidos, recriados, e novamente transmitidos. Só assim se há-de respeitar
a memória colectiva e justificar o trabalho de recolha.
As lendas da nossa terra têm várias referências a mouras
encantadas. Esta é uma região que esteve sobre a influência árabe, foi
reconquistada pelos cristãos, mas aqui ficaram em “encantamentos” a guardar
ricos tesouros. Em geral, as mouras encantadas viveram e, ainda vivem, em
rochedos, fontes, rios, poços, castelos, ruínas antigas, montes, cabeços,
locais antigos, e sempre assinalam vestígios de civilizações extintas. No nosso
concelho, o castelo de Ansiães, as antas, as casas senhoriais, os cruzeiros, as
alminhas e outros dão azo a lendas e histórias que atestam a importância desses
locais. O Abade apontava para a necessidade de inventariar tais lendas porque “constituem
ponto seguro, onde os investigadores arqueológicos devem dirigir de preferência
as suas pesquisas.”
As mouras encantadas estão frequentemente associadas a
poderes miraculosos e artes mágicas. No Pé de Cabrito, termo de Zedes diz a
lenda que há um buraco que vai sair a grande distância por baixo de terra e
claro, era frequentado pela mouraria; no percurso encontrava-se um tesouro
encantado que nunca ninguém ousou recolher. No Gorgolão, também termo de Zedes,
a moura que toma a forma de serpente serve-se do pavor da moradora para fiar o ouro
e só a intervenção divina, com um “Valha-me Deus” salva esta alma dos poderes encantatórias.
Em Parambos, na Fonte Velha, de mil em mil anos, uma moura encantada aparece para
encantar quem por ali passa; o sortudo puxa para os braços um fio de ouro saído
de um buraco; até hoje ninguém conseguiu segurar todo o fio, sem dominar a
ânsia de o partir, pois é nesse gesto que se quebra o encanto e tudo se reduz a
pó. Em Campelos, no vale do Abade, uma outra moura encantada estendia figos, e apenas
um caminhante teve a sorte de os meter ao bolso, que dele saíram libras de ouro;
quem procurou a seguir, nada encontrou. No Pombal, a moura encantada,
disfarçada de serpente continua à espera de mancebo para beijar e com ele
casar. No poço do Mogo, vive acorrentada uma outra moura encantada, que ora é
serpente, ou uma linda mulher. Em Marzagão, nos lugares das fontes de Verão,
uma linda menina mourama aparece a trabalhar no tear e a cantar. Nas Areias, na
noite de S. João aparecem mouras a estender cueirinhos de ouro. Há ainda mouras
encantadas por muitos locais do concelho e onde a imaginação o quiser.
De onde virão estas lendas e histórias ligadas aos muçulmanos?
Foi larga e feroz a batalha da reconquista, os árabes pela força das armas
viram-se obrigados a largar as nossas terras porém deixaram lindas mouras
encantadas em guarda aos seus tesouros. Ninguém até agora encontrou o ouro
abandonado, mas muitos continuaram a porfiar na procura, revolvendo a terra e
encontrando as riquezas que ela grata lhes devolvia: cereal, vinho, frutas… À
maior parte mostrou-se parca e cruel para as suas vidas e desistiu de a cultivar,
entrando sem medo, como nas lendas, em novos locais assombrados, que lhes deram
as riquezas anunciadas, dinheiro suficiente para uma vida com toda a dignidade.
Voltando ao Abade de Baçal é bem possível que, na crença das
mouras encantadas, subsistam vestígios do culto ao Genius Loci,
divindade que tinha a seu cargo proteger os termos das povoações. Para
desarreigar esta crença, a Igreja colocou as diversas freguesias e povos sob a
invocação de um santo do seu calendário, padroeiro do lugar; por exemplo S.
Gonçalo de Zedes. Fica mais claro que Zeides, Ceides ou Zaides está ali
naqueles nove esteios encimados pala pedra que a moura transportou e continua
vigilante e protectora da aldeia.
As lendas das mouras,
bem como os contos populares têm sempre um carácter pedagógico porque nelas se
descobre uma aprendizagem, uma lição. O grande percurso que a moura executa
significará a dificuldade intrínseca para se atingir algo que valha a pena. O filho
ao colo mostra-nos o que se considera o maior afecto humano, o amor maternal. A
lenda do Gorgolão aponta para a fé em Deus que protege os crentes. A
obrigatoriedade de dobar dos fios de ouro até ao fim mostra a necessidade de
perseverança nos empreendimentos humanos. Os figos que se transformaram em
libras de ouro indica o factor sorte em muitas das realizações do homem…
Uma moura e uma pedra
à cabeça e pela mão o seu filho...
Não é um calhau mas uma pedra. Um calhau não tem utilidade, é
palavra depreciativa. Uma pedra serve um propósito, faz sentido. Um calhau é
aquele que está no chão, inútil, um entre muitos. O simples gesto de sobre ele
nos curvamos adquire nobreza. Um calhau é a forma grotesca que emerge da terra,
porém precisa do esforço, do engenho e da arte do homem para se tornar
ferramenta, material ou artefacto e, transformar-se numa pedra e maravilha das
maravilhas, até em esculturas que poucos parecem entender. Ao contrário do
homem que oferece as costas ou os ombros ao peso que quer carregar, a mulher carregava
o peso à cabeça e concorde-se, fá-lo com muito mais dignidade, pois caminha
direita e altiva. Por isso, esta lenda é também uma homenagem à mulher: ao seu
esforço e importância no lar; o seu amor, a sua dignidade e, acima de tudo, o
papel ímpar que tem na sociedade rural.
Uma moura pega numa pedra de umas boas toneladas, carrega-a à
cabeça numa percurso de uma légua para a colocar sobre esteios de pedra
sobranceira a um belo povoado. Eis um acto extraordinário, por mais inverosímil
que seja e pode transformar-se numa história mágica e extraordinária.
Em homenagem a meu pai recentemente falecido, um grande
contador de história, poderia iniciar-se assim como ele o fazia:
Certa ocasião… Deixo o resto à Vossa imaginação que a minha
pouco vale.
E assim termina a nossa viagem à Casa da Moura, mas pode ser
que pegue no bordão de caminhante e parta para novas descobertas em outras
viagens na minha terra. Na viatura da chamada modernidade que impõe a
racionalização de custos e o consequente encerramento de serviços no interior e
a falta de investimento público é que não embarco, porque isso, como refere
Adriano Moreira, significa desistência face a uma parte do território nacional.
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