Tuesday, August 06, 2013

Comunicação no Encontro com as Letras no FARPA 20013



Caros pombalenses e amigos:
Agradeço em primeiro lugar à Arcpa o privilégio de apresentar um livro que é mais um escrito, um sentimento e um desabafo de um viver no antigo mundo rural em comunidade e em perfeita simbiose com a natureza e o sagrado, os animais e o ciclo das estações.
Agradeço também à professora Fernanda Natália o convite pessoal e o pedido de participação no jornal “O Pombal”, de que muito me orgulho, único registo escrito cíclico e duradouro do concelho, por onde passam pensares e notícias de boas dinâmicas que espelham a essência, o sentir e o devir do reino de Ansiães.
Manifesto a satisfação deste encontro se realizar neste festival de artes. O FARPA é um caso único do país: uma singela aldeia, teima anualmente oferecer um cardápio de eventos que passam pelo teatro, a música popular e erudita, as artes plásticas, a literatura, a animação de rua, o desporto… O FARPA nasce do trabalho associativo, que conseguiu uma práxis cultural metódica e perseverante, em que a atividade dramática de produção própria, entre outras, foi sempre a argamassa e o traço de união de uma comunidade que produziu uma obra física, o salão e alicerçou nos pombalenses laços inquebráveis de “união, igualdade e fraternidade”.
Pombal é um topónimo derivado de “pomba” representativa do Espírito Santo. O seu culto é um dos mais antigos do mundo cristão. É com a força do espírito de Deus que se inicia a evangelização. “Sereis inspirados para o que tiverdes de dizer. Não sereis vós a falar, mas o Espírito do vosso Pai é que falará por vós” (Mt 10, 19-20). É com o espírito que atingimos a verdadeira dimensão humana.
O culto do espírito atravessa todas as gerações e é teorizado pela primeira vez por Joaquim Fiore no século XII. O abade de Cister e particularmente os seus seguidores, “os espirituais”, divulgaram a doutrina de que todas as coisas eram dividas em tríades a partir da Trindade Divina. A primeira tríade era a dos homens, divididos em três classes: casados vivendo sob o Pai; clérigos cujo patrono era o Filho; e os mais venturosos e perto da perfeição seriam os monges que viveriam sob o Espírito Santo. A segunda tríade era a das doutrinas e dividia-se em três épocas: a primeira foi a do Pai que corresponderia à do Antigo Testamento caracterizada pelo temor a Deus e tempo dos patriarcas; a segunda foi a do Filho correspondendo ao Novo Testamento e caracterizada pela evangelização e pelos sacerdotes; a terceira e última época será a do Espírito Santo ou Paracleto, caracterizada pelo domínio do espírito em que os homens se amarão e viverão em perfeita harmonia governados por um Papa Angélico ou um Imperador Virtuoso, que antecederá o fim dos tempos e a última vinda de Jesus Cristo. Nesta teoria do Joaquimismo há ainda uma terceira que corresponde à maneira de viver individual: os que vivem da Carne, vivem sob o Pai; do Filho vivem a um tempo sob a carne e o espírito; os que vivem apenas de acordo com o espírito estão sob a influência do Espírito Santo; nesta linguagem metafórica entenda-se a carne, os prazeres do mundo e o espírito, a entrega total ao divino. 
Os descobrimentos portugueses seriam a tentativa de realizar na terra esta terceira idade sob a celebração do Espírito Santo que na conceção do padre António Vieira daria lugar ao quinto e último império (depois do assírio, do egípcio, do persa e do romano). Consistiria na conversão universal, o advento da última vinda de Cristo à terra, o último dos tempos do mundo, protagonizado pelos portugueses, o povo eleito, governariam o mundo em grande progresso e concórdia sob a liderança do ressuscitado D. João IV ou dos seus sucessores.
Em Fernando Pessoa vamos encontrar esta ideia em formas distintas, pois o que ele prognostica é metafórico e de matiz imaterial. Na “Mensagem” ele exprime poeticamente a sua visão mítica e nacionalista de Portugal prefigurando um ressurgimento da cultura e do pensar lusíada como baluarte a defender e a divulgar: “... Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda a idade / Quem vem viver a verdade / / Que morreu D. Sebastião? (Quinto Império da Mensagem)...
Agostinho da Silva transporta esta tese para os tempos atuais e dirá: “estamos no limiar daquela idade de que profetizou o bom abade Joaquim”. O culto popular do Espírito Santo nos Açores, Tomar, Sintra e muitos outros locais, como o caso de Pombal de Ansiães são a prova de que há vontade, no mínimo inconsciente de aspirar a esta utopia. Nos Açores é instalada uma criança como Imperador do Mundo. A criança pura, sem o estigma da maldade, representa o modelo do homem a que se aspira, o padrão daquilo que se deve fazer, “eles só coravam “imperador do mundo aqueles que tinham escapado à educação. E “a educação não terá nenhuma outra tarefa senão a de deixar que a bondade inicial esplenda e seja”, eis o ponto de partida para a construção de um mundo melhor.
Mas voltamos ao Pombal. As lendas sobre mouras encantadas e os topónimos de Castelejo e Castelo dos Mouros dão indicações sobre a sua antiguidade e importância. A lenda da ORDEM DE MARIZ fundada espiritualmente em SÃO LOURENÇO DE ANSIÃES pelo criador da identidade portuguesa, o primeiro rei D. Afonso Henriques. O facto extraordinário e mágico que ela aporta, direciona-nos para a génese, ou melhor a unção pelo ritual e pelo sagrado de um novo povo eleito, que dará novos mundos ao mundo, criador de um novo e último império.
Selores… e uma casa é também uma metáfora de uma época que terminou, o antigo mundo rural português. Nessas páginas pretende-se fazer um retrato dessa vida à imagem de uma aldeia no nordeste transmontano do concelho de Carrazeda de Ansiães.  Selores, vocábulo estranho é o nome de um povoado, entre centenas, no mundo rural, escondido numa poça do Portugal do interior, interagindo com as povoações vizinhas, sobrevivendo de uma agricultura de subsistência, das relações de dependência com os donos da terra e do trabalho nas quintas do Alto Douro.
Os seus habitantes quase sempre de olhos na terra e no seu sustento, raramente olham o alto para ver um castelo que lhes trouxe proteção, guarida e sonhos de grandeza, mas também temor, obediência e disciplina. Depressa lhe viram as costas porque o trabalho é árduo e só é interrompido pelo repicar do sino para o preceito religioso, convictos de que a fé é essencial para obter o pão para a boca, pois creem ser no divino o último garante do sucesso da colheita. A epopeia desta gente do campo é uma labuta intensa, do nascer ao pôr-do-sol, condicionada pelo ciclo das estações e só intervalada para a conversa no adro, a visita à Igreja, a ida à feira e à romaria mais próxima.
Nas frestas que se abriram da noite da história houve muito que contar: um celeiro a rimar com sustento, um povoado romano com tesouros por descobrir, uma igreja que foi ninho da cristandade, um negrilho, à semelhança de Torga, “poeta” de todos nós, rostos que porfiaram na introdução de novas culturas agrícolas e aportaram o seu contributo ao desenvolvimento regional e muito mais...
E uma casa no centro da aldeia: bela, misteriosa e desprezada. Uma outra metáfora deste mundo rural, símbolo de um património que abandonamos e esquecemos. E uma Casa que foi cabeça dum Morgadio instituído em 1616, pelo Bispo do Porto, Frei Gonçalo de Morais. O solar, cuja construção foi iniciada no primeiro quartel do século XVII, encontra-se, nos dias de hoje, em mau estado de conservação, quase em ruinas. E uma casa a lembrar famílias ilustres, que privou com reis, geriu os destinos do concelho e numa intricada teia de casamentos e relações se tornou dona da vila de Ansiães. Todavia, o tempo esfumou anteriores grandezas e o apagador da democracia nivelou por igual, desvanecendo a sua importância social, que durante décadas foi a base da economia das aldeias.
Ao olhar esta velha e misteriosa habitação, o viajante naturalmente propenso às letras não terá dificuldade em engendrar um enredo novelesco. Foi o que Camilo fez ao escrever o romance, “Santo da Montanha”. Numa provável visita à aldeia, construiu uma novela que retrata o declínio da nobreza, entrelaça a paixão e o drama, estabelecendo a bipolaridade da santidade e da maldade presente na personalidade do ser humano, à boa maneira romântica.
Este propósito de estudo serviu também a uma inventariação de aspetos da sabedoria popular constituído por lendas, orações, cantares, mezinhas, usos e costumes, que temos vindo a recolher há alguns anos e são exemplo da riqueza cultural do mundo rural.
É um olhar a um momento que terminou nas suas diversas valências da cultura popular: as pessoas, as habitações, os trabalhos, o lazer, as crenças, os saberes, os mitos... Porque é preciso recordar, saber quem fomos, para melhor desenhar o sentido para onde queremos ir.
E aqui que chegamos, deprimidos e em crise, num intervalo de uma breve era de prosperidade e novamente a sonhar com a Índia e o Brasil. Creio que o vasto património cultural edificado, mas também de saberes que está escrito no nosso código genético não pode morrer porque aí está a essência do V império para construir uma sociedade melhor, mais justa e igualitária. Termino citando Pessoa:
 "Ó Portugal, hoje és nevoeiro... / É a Hora!" (Nevoeiro da Mensagem).

José Alegre Mesquita
Pombal de Ansiães, 5/08/2013